31.10.08

hoje só quero fumar

.














hoje só quero fumar. o fumo é a minha mortalha.
























não. hoje não. amanhã logo se verá. não quero falar contigo. não quero falar com ninguém. não quero falar de nada. não quero dizer para não ter de mentir. não quero sentir. não quero nada. não me quero tão pouco. e aliás. amanhã logo se verá. não quero pessoas. não quero livros. não quero beijar. não quero nada de nada. hoje só quero fumar. amanhã logo se verá.







hoje só quero fumar. o fumo é a minha mortalha. amanhã logo se verá.




























vocês vão morrer todos saudáveis






fotografias de gretchen wintersberry

















27.10.08

ainda não. não. amanhã. só. de manhã

notas à parte









se me morres não faço nada
sento_me a esperar




















" _ eu sou a que não procuras.
só então me lembrei que era ali que viviam em liberdade os internados mansos do manicómio municipal. tive que me identificar como jornalista perante a direcção do hospital para que um enfermeiro me conduzisse ao pavilhão das urgências. no caderno de admissões estavam dois dados: rosalba ríos dezasseis anos sem profissão conhecida. diagnóstico: comoção cerebral. prognóstico: reservado.

atravessámos uma sala a abarrotar com um forte cheiro a ácido fénico e os doentes enroscados nas camas. ao fundo num quarto só estendida numa maca metálica estava a que procurávamos. tinha a cabeça coberta de ligaduras a cara indecifrável inchada e roxa mas bastou_me ver_lhe os pés para saber que não era. só então me lembrei de perguntar a mim mesmo: que teria feito se tivesse sido ela?"



pág.89







"_ diga_me senhor: não é o que escreve as cartas de amor no jornal?
nunca podia ter imaginado que uma garota adormecida pudesse causar em alguém semelhantes estragos. fugi da fábrica sem me despedir nem pensar sequer se alguma daquelas virgens de purgatório era afinal a que eu procurava. quando saí dali o único sentimento que me restava na vida era a vontade de chorar."



pág. 90






















há que saber ficar para se partir a seguir. só depois. não é assim que se desiste sem mais nem menos do nada porque se calhar queres ir. há que saber preparar o caminho para se deixar. então não será que talvez já não te importas com nada e o caminho que deitas atrás até ao fechar das portas e do partir pedra sem atirar é o mesmo que me traçaste. por ventura te vais sem te ralares quem fica aqui parada. desvias_te assim do que começaste a criar sem querer semear nenhum lar. nem há casas. nem dores de partos. vidas adormecidas. só sonâmbulares. feridas a chagar. segredos sem contar.e sais_me assim sem avisar? houve entrada?


se me morres não faço nada
sento_me a esperar.

há que saber dar para depois saber tirar. haja lágrimas mas não me morras já. ainda não. não. amanhã. só. de manhã. porque se faz tarde para eu aí chegar.









notas à parte esqueci_me de te dizer o tal de infinitamente
que fique por ali só entre mim e mim






















excertos do livro memória das minhas putas tristes
de gabriel garcía márquez

fotografias de kalua krynska

22.10.08

post scriptum

post scriptum















há doenças piores que as doenças
há dores que não doem nem na alma
mas que são dolorosas mais que as outras
há angústias sonhadas mais reais
que as que a vida nos traz há emoções
sentidas só como o imaginá_las
que são mais nossas do que a nossa vida.
há tanta cousa que sem existir
existe existe demoradamente
e demoradamente é nossa é nós
por sobre a alma a adejar inútil
do que não foi nem pôde ser e é tudo.

dá_me mais vinho porque a vida é nada.



19.11.1935
in poesia do eu de fernando pessoa pág.349

















há nas horas um tempo mágico que não se vê nunca nos ponteiros de nenhum relógio. aquele em que o tempo é de não e de nada. outros há em que se demora em atravessar. demoradamente não tarda. vagarosamente passa. não. não adianta olhar para dias de ar. são dias de brancas vivas. brandas vidas. fracos abraços. desventura de tempo este o nosso.

dá_me antes um rio de marés com sal de amar. bravo. dá_me antes um dia que não faça já parte de nenhum calendário. dá_me o não de um nada. dá_me. porque há horas em que o não nada mais é a não ser de nada. mas dá_me.

alento_me ao alto algures rumo sem norte sem conseguir tocar.












post scriptum: de querer tanto escrever inscrevo_te na página. creio assim ser que na dúvida de o tentar ser ou escrevê_lo ficas como que como posso falar mais ainda dentro em mim apesar de saber que não acontecerá. mas que fazer se acredito sim que tanto o queira. não me digas que talvez não será.









algures sem rumo nem norte






fotografias de frizt faber

16.10.08

entre parêntesis

entre parêntesis












de momento não me ocorre nada para dizer. volto para casa fecho as portas encerro as janelas e acendo as velas. e os cigarros também.




























não: toda a palavra é a mais. sossega!
deixa da tua voz só o silêncio anterior!
como um mar vago a uma praia deserta chega
ao meu coração a dor.

que dor? não sei. quem sabe saber o que sente?
nem um gesto. sobreviva apenas ao que tem que morrer
o luar e a hora e o vago perfume indolente
e as palavras por dizer.



l'inconnue
12.6.1918
in poesia do eu de fernando pessoa pág.122


















"_ tu persegues uma utopia!"
estática fiquei colada ao chão do quarto. por instantes um déjà vu. trintas e tais anos a viver assim. correndo atrás do que não existe.











até quando?
até ao dia em que a terra me cobrir porque tenho pavor a fogo. e de noite sempre a erva é mais fresca que qualquer aragem que não me entre pelo quarto adentro.









fotos de larafairie









12.10.08

muito muito mais que muito imenso

três pontos ...













tem música tem violino tem piano tem pintura tem toda a cor soberba em cada beijo teu. tem vida. tem o nascer.






















tu não me decidas morrer senão serei eu a levantar_te da terra para me deitar primeiro































" veronika empurrou a porta da sala de estar, chegou diante do piano, abriu a tampa. e _ com toda a força _ bateu com as mãos no teclado. um acorde louco, sem nexo, irritante, ecoando pelo ambiente vazio, batendo nas paredes, voltando aos seus ouvidos sob a forma de um ruído agudo, que parecia arranhar a sua alma. mas isso era o melhor retrato da sua alma naquele momento.

tornou a bater com as mãos, e mais uma vez as notas dissonantes reverberaram por toda a parte.

"sou louca." posso fazer isto. posso odiar, e posso espancar o piano. desde quando os loucos sabem colocar as notas em ordem?

bateu no piano uma, duas, dez, vinte vezes _ e, de cada vez que o fazia, o seu ódio parecia diminuir, até que passou por completo. então, novamente, uma profunda paz a inundou."





páginas 87 e 88










"talvez no início, estranhes o facto de que não exista mais música durante a noite: no entanto, sempre que a lua aparecer, haverá alguém disposto a tocar sonatas, principalmente num sanatório _ já que todos nós aqui somos lunáticos."




pág. 155

















"há muitos anos atrás, quando eu era uma criança e a minha mãe me obrigava a aprender piano, eu dizia a mim mesma que só seria capaz de tocá_lo bem quando estivesse apaixonada. ontem à noite, pela primeira vez na minha vida, senti que as notas saíam dos meus dedos como se eu não tivesse controlo algum sobre o que fazia."



pág. 190






















mais um dia nos meus braços. horas que se transpiram em frases inacabadas ou de palavras ditas que se ouvem segredar. visões benditas essas tuas as que te olho sem o dizer. continuas_te assim de olhos bem fechados e falas. falas tudo o que não queres dizer. por cada abraço meu é mais uma tecla que se ganha no tocar. a clave começa a nascer. espera_nos um palco em que enfim seremos nós. eu porque te toco. inteira. tu. porque queres saber. será assim o meu dueto a quatro mãos. enfim soberbo. tu nas brancas. eu com o preto. e tem uma cauda surda de sons. aqueles que os outros não irão ver. e nós como que em cada nota alta achamo_nos por fim em se merecer. sem mais nem menos foi só aceno foi só apelo. muito. muito mais que muito. imenso. com todo o querer.








"ela está morta.
mas a mulher mexeu_se e abriu os olhos.
_ o que se passa? _ perguntou veronika.
_ nada. ou melhor, um milagre: mais um dia de vida."




pág. 237






tem piano
tem pintura
tem toda a cor soberba em cada beijo teu
tem vida
tem o nascer
tu não me decidas morrer. senão serei eu a levantar_te da terra para me deitar primeiro






_ amo_te
_ muito
_ muito mais que muito
_ imenso









excertos do livro veronika decide morrer de paulo coelho
fotografias de irma atanassova

1.10.08

I'll be looking at the moon but I'll be seeing you

dois pontos:



I'll be looking at the moon
but I'll be seeing you


















"passo metade dos meus dias desesperada por não te poder tocar. o resto do tempo, sinto que não importa tornar ou não tornar a ver_te. não é uma questão de moral, mas do ponto até onde chega a resistência de uma pessoa."











"ele que nunca se sentiu só nas milhas de longitude entre povoados de deserto. no deserto, um homem pode agarrar a ausência na concha das mãos, sabendo que tem nela um alimento mais precioso que a água. conhece uma planta, próximo de El Taj, cujo coração, quando arrancado, é substituído por um líquido cheio de virtudes medicinais. todas as manhãs se pode beber uma quantidade de líquido de volume igual ao do coração ausente. a planta continua a florir durante um ano, até morrer de uma qualquer carência."


pág. 111






"no jardim botânico, cheia de determinação e fúria, ela batera com a cabeça no portão. demasiado orgulhosa para ser uma amante, um segredo. recusava_se a viver num mundo dividido em compartimentos. e ele virara_se para ela, de dedo espetado, "ainda não tenho saudades tuas".
"hás_de ter".

pág. 122






















das poucas vezes que te vi tive de desviar o olhar. a atenção que me prendia a ti era sufocante. e eu não queria deixar faltar_me o ar. na primeira vez pensei que "conseguiria facilmente apaixonar_me". então para o evitar não olhava. se te conhecesse tudo teria sido bem mais complicado.e eu não gosto de coisas complicadas. só de complicá_las. ora assim sendo se um dia me aparecesses à frente com esta minha ideia pré_fabricada tinha logo à partida de te excluir. e eu não queria excluír_te de mim. pelo contrário. semeava cada vez mais a ideia de um suposto qualquer encontro para depois a partir daí ter que ser eu a nos complicarmos.

acho que nunca percebeste isto. nem eu. só agora que o falo.

hás_de sentir_me a falta. é o bem que te desejo hoje. aliás desejo_te nem bem nem mal. enfim bem porque já não te desejo e mal por não te querer mais. nem bem nem mal afinal. hás_de ainda lembrar_te algumas vezes . até chegares enfim ao fim do mundo e dizeres que nada mais há para se conhecer. a não ser eu claro. que viste uma única vez enquanto passavas ao lado. neste lugar. o de mim. nem te apercebeste. nem reparaste.

hás_de lembrar_te ainda de mim quando perceberes por fim que nem me olhaste.


























acho que te tornaste desumano", disse_me ela
"não sou o único traidor"
"não me parece que te importe, isto que aconteceu entre nós. passas por tudo de largo, com o teu medo e o teu ódio à posse, à ideia de possuir, de ser possuído. e julgas que isso é uma virtude. eu acho que tu és desumano. se eu te deixar, para quem é que te viras? arranjas outra amante?"
eu não disse nada.
"diz que não, raios te partam".



pág. 170










excertos do livro o paciente inglês de michael ondaatje








I' ll be looking at tee moon
but I' ll be seeing you





fotos katia chauscheva
sem música porque a não temos sequer