3.12.10

metamorfose alteração profunda que sofrem certos animais durante o seu desenvolvimento pós_embrionário















ao meditar acerca das razões porque o peixe mudara de cor precisamente na hora em que o pintor acentava na sua fidelidade ele pensou que lá dentro do aquário o peixe realizando o seu número de prestidigitação pretendia fazer notar que existe apenas uma lei que abrange tanto o mundo das coisas como o da imaginação. essa lei seria a da metamorfose. compreendida a nova espécie de fidelidade o artista pintou na sua tela um peixe amarelo.





excerto do poema aquário de herberto helder














muda_se o cigarro de mão e atira_se o fumo ao ar. desvia_se a terra para o lado e continuas sem lá estar .onde páras? altera_se o lábio e muda_se a vontade de estar . onde páras? transforma_se o olhar e olha_se para lá. e não estás. onde páras? muda_se o corpo muda_se o braço muda_se o tempo da gente com vagar. onde estás? agora tenho asas. deixei_me da pele que me tapava a forma de te estar. deixei_me de ti porque me quis deixar. agora levo_me onde não me esperas e não te quero encontrar. onde páras?



metamorfose mudança de forma física e moral









fotos de shaden

13.10.10

falta_me a vontade de me cansar mas que cansaço













o que há em mim
é sobretudo cansaço
não disto nem daquilo
nem sequer de tudo ou de nada
cansaço assim mesmo ele mesmo ele
cansaço
um supremíssimo cansaço
íssimo íssimo íssimo
cansaço




álvaro de campos






























falta_me vontade falta_me vontade falta_me vontade falta_me vontade falta_me vontade de me cansar e cansei_me do cansaço cansei_me do resto cansei_me das letras cansei_me das palavras cansei_me dos livros cansei_me dos dias cansei_me das noites cansei_me das luas cansei_me dos azuis cansei_me dos brancos cansei_me dos cinzas mas não me canso de fumar cansei_me dos mares cansei_me das marés cansei_me das águas mas não me canso de respirar cansei_me de tudo cansei_me do nada cansei_me de todos cansei_me dos outros cansei_me de ti cansei_me de mim cansei_me de nós cansei_me disto e daquilo mas que cansaço que cansaço que cansaço este mesmo cansaço que cansa tanto e não cansa nada e faz com que me falte a vontade a vontade de me faltar a vontade que me falta a vontade falta_me a vontade de me faltar de me faltares falta_me vontade falta_me vontade falta_me cansar







fotografias de francesca woodman

18.9.10

na marca que me deixaste










tanto falar em surdina contigo é só triste sina só não me digas que não
vou partir vou voltar reconquistar o prazer não me digas adeus
vou viver outra vez renascer vou gritar nunca digas adeus



rui reininho













agora que tu não estás deixa_me que te diga que não sinto a tua falta até vires outra vez ter comigo como naquela tarde em que a falta tua a falta dela a falta de outro a falta de todos não era falta nenhuma a não ser a minha. a falta de todos a falta de nenhum a falta a falta minha a falha tua ainda me falta outra tarde em que me vais vir ao chegar como quem não quer nada nem nada lhe falta a não ser a falha de se ser pontual e não se sabe se vai ou se parte mas não fica essa única certeza que apresentas sempre na manhã seguinte o não ficar é certo mas que falha! chegas_me assim outra vez como quem não quer nada e tudo de mim te é dado sem pedir nada nada de ti nada entre nós a não ser a falta que se sente quando não se está. estamos assim a sós tu na tua eu na minha nós não na nossa porque somos assim como quem não quer a coisa mas precisando ambos daquele abraço que nos aperta as gargantas e nada nos faz dizer nada porque não há nada para dizer senão abraçar. beija_se beija_se beijam_se as línguas cheira_se o corpo agarra_se o suor das costas fecham_se os olhos porque não se quer olhar não se precisa olhar precisa_se sim não falhar as faltas não se precisa dizer nada olha_se assim de olhos fechados tu em mim e eu contigo cerram_se_me os dedos na tua boca e fecho_a com a minha para não me dizeres nada porque sei que vou ter a tua falta espalhada pelo corpo todo da cabeça aos pés na marca que me deixaste.








fotografias de francesca woodman

2.9.10

e agora não morres porquê?











e agora não morres porquê? morres sempre neste dia porque não morres outra vez? raios te partam estupor de um raio. tens de morrer mais uma vez que seja. não percebes que se não voltares a morrer não voltas a viver nunca mais? tens de voltar para voltar a morrer. é sempre nova a maneira como se morre. é preciso é morrer mais. senão não se volta não se morre de novo e sempre que se morre é novidade. estupor de um raio. morre. e agora não morres porquê? morres sempre neste dia porque não voltas a morrer? só mais uma vez. estupor de um raio.

15.7.10

atreve_te a faltar_me













na minha pintura existe uma espécie de sistema circulatório. mesmo que uma só forma esteja fora do seu lugar a circulação interrompe_se o equilíbrio é quebrado. quando um quadro não me agrada sinto_me fisicamente incomodado sinto_me mal como se o meu coração não trabalhasse como devesse não conseguisse respirar estivesse a sufocar.



miró










.ponto final afinal o ponto é um renascimento d'alma. espanta_me o branco e estampo_me na primária. j'aime ma. j'aime tisse. j'aime marc. j'aime chagall. j'aime mi. j'aime mó. j'aime moi. j'aime de toi. nada mais é do que se amar. pinta_se. se pinta. pinta_se o ponto. pinta_se a ti. pinta_se o gosto. pinta_se sem fim. fim de ponto. fim de mim. fim de ti. fim. pinta_se a cor. a cor se pinta. pinta_se a dor. a dor de mim. pinta_se a mágoa. se pinta assim. pinta_se porque é preciso. pinta_se de lado. pinta_se de alto. pinta_se de lado de alto a baixo. pinta_se o tom. sem dom. atreve_te a faltar_me. falta_me a água. falta_me o ar. falta_me a vontade. a vontade de se pintar. falta_te a vontade. a vontade de recomeçar. faltas_me assim. atreve_te a faltar_me.
a 1ª foto é de julião sarmento a 2ª não me lembro mas também isso agora interessa se é minha?

10.7.10

. ponto final








quando estás não há lugar para mais palavras. a palavra és tu no sentido de querer que sejas assim a minha página. cada letra é um bocado de ti sem saberes que o és. entrego_lhe a tinta e espalhas_te por mim branca pálida válida. no corpo há apenas arrepios de frio o estremecer de nadas. o texto és tu com todo o sentido que a frase faz. não há lugar a discurso directo porque o tocar a letra só um o faz. respira_se fundo num mar de parágrafos num ar líquido sem rimar num sufocar de monólogos numa escrita na primeira pessoa sem destinatário. se continuas na minha página terei um dia escrito um livro sem fim à vista. o final és tu. tu que me começas agora a incomodar. ponto final.

30.6.10

pina









por vezes queremos falar de qualquer coisa e chegamos lá muito perto. mas compreendemos também que é tão importante que parece estúpido só o facto de o mostrar. então é como se o "vestíssemos" com outra coisa porque mostrá_lo parece arriscado temos medo. é algo demasiado grande. há algo de muito mais sério do que aquilo que o público em geral pode ver. e existe está ali mas não vai ser exibido porque eu quis escondê_lo. é como se houvesse sempre um grande conflito entre aquilo que queremos tornar claro e aquilo que nos serve para nos escondermos.



pina bausch























esconde_se o afecto esconde_se o amor esconde_se o ódio esconde_se a raiva esconde_se a ternura esconde_se o olhar esconde_se o respirar esconde_se a pele esconde_se a voz esconde_se a palavra esconde_se a página esconde_se a vida esconde_se na morte esconde_se na boca a vontade de se beijar esconde_se a vontade de se amar esconde_se por tudo e por nada e assim escondida também se esconde o que nada há

27.6.10

tu




como se me tivessem cegado













leve levemente como quem chama por mim
fundido na bruma no nevoeiro sem fim
uma idéia brilhante cintila no escuro
um odor a tensão do medo puro
salto a janela com muita atenção
ponho_me à escuta bate_me o coração
sabem que me escondo na bellevue
ninguém comparece ao meu rendez_vous
salto para cima experimento o colchão
onde era sangue é só solidão
os meus amigos enterrados no jardim
e agora mais ninguém confia em mim
era só para brincar ao cinema negro
os corpos no lago eram do desemprego




excerto do texto bellevue de rui reininho









há horas assim em que tento conseguir tentar olhar_te bem fundo nos olhos e não encontro lá nada senão só um imenso nevoeiro como se te tivessem cegado e que apesar de ter vontade de os olhar fecho os meus com medo de que um dia os abras num renascer de luz que me fere que me dói que me atira fora me pisa me mata mais ainda do que esta vida em purgatório que procuro levar assim nuns dias felizes noutros menos mas não destinada ao fogo de um inferno que seria deixar de te olhar enquanto aparentemente viva por poucos tempos nada me importava a não ser só esta fé que mantenho de te perseguir até me cansar. olha_me: o respirar ainda cá está enquanto durares e sempre se manterá enquanto algum de nós nada esperar nunca nada porque nada há já a esperar.







fotos de jerry uelsmann

21.6.10

.chocar. fazer_vos desistir do que vos faz continuar aqui. deixar de existir_me. favorecer_vos. devolver_vos o tempo perdido na tentativa de me sentir, sentindo o gelo e o negro que vos assegurei estar longe do mais profundo amar_vos. desistam_me sem regras, ouso perde_las quando intervalo a vida e vivo nos minutos com a devassidão e a crueza que a minha existência encerra antes mesmo do mais profundo. ainda aí estão?

351 de oldmirror
em sinais de fumo a 10/19/2009




















só já sinto a vontade de sentir que tu sentes há tanto tempo. tempo perdido de todo um sentimento sem sentido nem direcção sem saber se o que se sente vem do fundo do coração que se abate bate amassa. não beijes de boca fechada. abre as letras às palavras que te escorregam na língua. sente_te de vez em quando sente_te sente_te sente_te. senta_te e deixa sentir_te. a verdade é nua. crua. chega a doer a fazer ferida. a mentira és tu. doce. suave. impossível ficar indiferente à tua pessoa ao não querer ser não querer estar não querer. já não consegues chocar nada. o choque és tu.por aqui há gente. gente que te lê. que te sente como tanto tu querias sentir. aprende_te de novo inicia_te apaga a página vira a folha não dês título. não numeres. enamora_te. recomeça_te. não te derives. rima_te. afoga a memória num mar de vinho. lança_te ao rio. vem ter contigo. não há portas. não há chaves. não há nada. estás aí?



fotos de francesca wood

18.6.10

massamassadaamassadamassa







é desta massa que nós somos feitos: metade de indiferença metade de ruindade







fazemos dos olhos uma espécie de espelho virado para dentro com o resultado de muitas vezes mostrarem eles o que estávamos negando com a boca


excerto do ensaio sobre a cegueira
josé saramago















quando dava beijos lentos duravam_me mais os amores









fotos de obras de julião sarmento

9.6.10







impossível de escrever em palavras passa_se ao sentir sentido de um gesto tão simples como o ser_se abraçado porque o corpo se exprime assim deste modo e a alma o pede quando não se exige dançando_se na pele o que os poros nos pedem para fazer como que se houvesse um rodopiar de dedos entre nós através das palmas das mãos que não se cruzam nunca porque assim o preferem naquele movimento por vezes chamado a ser de obscuro porque ás claras cega de vez e morre_se a cada dia um pouco de cada vez devagar de manso sem pressa porque o tempo já não nos pertence nem nós o queremos prender nunca mais porque esse já era foi o que tinha de ser o que nunca aconteceu nem jamais o voltará a ser assim como nós que a nenhum se pertence

















vão para o diabo sem mim ou deixem_me ir sozinho para o diabo!
porque haveremos de ir juntos?








fernando pessoa

25.5.10

sim falar com gente dá_me vontade de dormir
pessoa

















sem a loucura que é o homem mais que a besta sadia cadáver adiado que procria?
fernando pessoa








foi um momento o em que pousaste sobre o meu braço num movimento mais de cansaço que pensamento a tua mão e a retiraste senti ou não?
fernando pessoa














é este o tempo desperdiçado em que a minha mão que arrasto já não na tua boca mas na vontade de a calar porque não a sinto no meu sono que me respira sempre que a garganta se me fecha e a boca me diz que já não gosta de ti
fotos de misha gordin

24.5.10

um homem só é um deus ou uma besta?










um homem só é um deus ou uma besta









como se não tivesse substância e de membros apagados
desejaria enrolar_me numa folha e dormir na sombra
e germinar no sono germinar na árvore
tudo acabaria na noite lentamente sob uma chuva densa
tudo acabaria pelo mais alto desejo num sorriso de nada
no encontro e no abandono na última nudez
respiraria ao ritmo do vento na relação mais viva
seria de novo o gérmen que fui o rosto indivisível
e ébrias as palavras diriam o vinho e a argila
e o repouso do ser no ser os seus obscuros terraços
entre rumores e rios a morte perder_se_ia.


nascimento último de antónio ramos rosa








ao cair da noite acontece sempre um crepúsculo essa hora mágica em que me decidi a esperar que o que me aconteça seja só o inevitável beijo que fica adiado. bestial!



um homem só é um deus ou uma besta?

21.5.10

alguém de bem que me atente a suportar_me a largar_me a estoirar_me a viciar_me a destramar_me a vadiar_me a aventurar_me a alguém de bem está claro?








prometo não falar de amor de gostar e sentir
portanto não vou rimar com dor ou mentir
joga_se pelo prazer de jogar e até perder
invadem_se espaços trocam_se beijos sem escolher
homens temporariamente sós
que cabeças no ar
não retratos de solidão interior
não há qualquer tragédia
mas um vinho a beber
partidas regressos conquistas a fazer
tudo anotado numa memória que quer esquecer
homens sempre sós preferem perder
homens sempre sós são bolas de ténis no ar
muito abatidos saltam e acabam por enganar
homens sempre sós nunca conseguem casar




rui reininho


















alguém de bem que me atente a suportar_me a largar_me a estoirar_me a viciar_me a destramar_me a vadiar_me a aventurar_me a alguém de bem está claro?

20.5.10










este terror de ser
sermos nós
nunca






















terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo
mal de te amar neste lugar de imperfeição
onde tudo nos quebra e emudece
onde tudo nos mente e nos separa



sophia de mello breyner








onde tudo não nos pertencerá nunca onde tudo não seremos nós nunca nós porque nós nunca poderemos ser como os outros querem que sejamos enfim sós