16.10.11

agora me lembro que tinha de marcar um encontro contigo. a minha desgraça a mim e só a mim a devo. em vez de voltar costas e continuar a seguir sem olhar a sombra voltei-me para trás e fiz-te frente. sacana de um raio estupor de uma figa que outro nome te não sei dar. maldito sejas quando decidi fazer-te frente como quem quer pegar um touro pelos cornos sem ajuda dos imbecis que me acompanhavam. deixa lá. cornos é o que mais para aí há.
 
 
 
 
 foto de luís patrício
 

14.2.11

resta_me saber que duas noites
foram minhas








o teu cheiro
que fecho ainda nas mãos
já sem tactos para nenhum outro corpo
a não ser o teu
porque enfim
me resta acima de tudo
a marca que ficou no meu





ainda














Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo:
— Perdoai! — eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia de simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano, ou essa súbita alegria
Ao ouvir na madrugada passos que se perdem sem memória...

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de sua inútil poesia e sua força inútil.

Resta esse sentimento da infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa tola capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem de comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo esse desejo de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não têm ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
E transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta essa obstinação em não fugir do labirinto
Na busca desesperada de alguma porta quem sabe inexistente
E essa coragem indizível diante do Grande Medo
E ao mesmo tempo esse terrível medo de renascer dentro da treva.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem história
Resta essa pobreza intrínseca, esse orgulho, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do próprio reino.

Resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento
Esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável
Resta esse eterno morrer na cruz de seus braços
E esse eterno ressuscitar para ser recrucificado.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio
Pelo momento a vir, quando, emocionada
Ela virá me abrir a porta como uma velha amante
Sem saber que é a minha mais nova namorada.





o haver de edu lobo




resta_me saber que duas noites foram minhas
resta_me o ser assim sem dia
sem norte
sem sorte
sem morte
sem ti
resta_me acima de tudo esta lembrança
que abraço todos os dias
que em duas noites foste assim
só para mim
resta_me apesar de tudo
o teu cheiro
que fecho ainda nas mãos
já sem tactos para nenhum outro corpo
a não ser o teu
porque enfim me resta acima de tudo
a marca que ficou no meu







ainda

9.2.11

o seguinte texto não é uma carta











o seguinte texto não é uma carta. também não é um desabafo. e eu sei lá o que é. chamem-lhe o que quiserem. o que é ao certo não sei. e eu lá quero saber do que é. trata-se apenas de um pequeno texto. um texto tão pequeno que nem serve para encher página . serve apenas para se ler e mais nada. também iria servir para mais o quê? para ser uma carta teria que ter um endereço uma morada ou alguém a quem a enviar. mas vamos supor que até existe alguém. alguém que sem o ser no entanto é e foi antes de mais alguém de quem gostei. não muito admito mas foi e ainda se calhar talvez o seja. imaginária? não. quem é que consegue escrever um texto assim para alguém que não foi não é ou nunca será? eu não. mas esse alguém teria de me dar um motivo para lhe escrever. carta ou não desabafo talvez não sei apesar de não gostar de conversar. admito que gosto mesmo é de desconversar. para que serve falar? a maior parte das conversas que tenho não passam de monologar. então para que serve uma carta desabafo ou coisa parecida e tal? mas vou pensar que te falo. dá-me então um motivo para te escrever uma carta te dar um desabafo ou coisa parecida e tal. eu sei do que se trata. trata-se de se gostar. e porque deveria eu escrever-te uma palavra que fosse se tu de mim não queres saber nada? dá-me só então um motivo por muito pequeno que seja para te dirigir palavra. se sabes onde me podes encontrar, se sabes que se calhar até posso esperar, dá-me razões para te escrever essa carta desabafo ou coisa parecida a tal. mas que te interessa isso a ti? se de mim não queres nada? nada. para mim é motivo para não deixar de pensar: “será que adiantava escrever-lhe uma carta dar-te um desabafo ou coisa parecida a tal?”. mas como escrever se nunca tive jeito para palavras? é verdade nunca soube como dizer quanto se gostava como se gostava ou se na verdade gostava. sei que tinha vontade de te abraçar, para não dizer por outras palavras outras coisas que gostava e que tinha muita vontade de te escrever numa carta te dar num desabafo ou coisa parecida a tal. poderia muito bem ser já agora e dar-te o tal abraço. mas como tu não estás tenho de me ficar pela vontade. aliás muita coisa na minha vida ficou assim dessa maneira só pela vontade sem palavra sem nada. foi aqui que me lembrei de escrever uma carta um desabafo ou qualquer coisa parecida a tal. para quem? como para quem se não há ninguém para tal? se houvesse nunca iria escrever uma carta dirigir um desabafo ou outra coisa qualquer dentro do género e tal. se houvesse alguém bastava um abraço. e depois dizer o quê e a quem numa carta desabafo ou coisa parecida a tal? que escrever lá?


“Querida amiga, então que tal? Que tens feito desde o verão para cá? E então esse natal? Como o tempo se passa. Deste que muito te quer dar um abraço.”


reduzida a um parágrafo nem deu para encher metade da página. pensei: “para escrever isto é melhor ficar calado!”. há uma certeza que tenho, depois destas interrogações todas. tenho vontade de um dia não sei quando te ter outra vez ao meu lado como no verão passado, sabes? esta vontade esconde-se não se fala para se evitar risadas. e depois penso: “mas risadas de quem? das minhas próprias gargalhadas?” é quando quase nada nos corre bem que se pensa então correr a palavra numa carta para conseguir dar meia volta por cima e evitar cair. para evitar uma queda maior brinda-se aos encontros, às aventuras, aos amores e até à saúde da vizinha que até parece ser boa pessoa. bebe-se uma cerveja claro combina-se com os amigos uma viagem até ao norte para assistir a outras touradas passeia-se até ao centro porque no alentejo também há garraiadas e destina-se o sul para as espanholas porque as de cá não sabem brincar. toda a vida tem sido uma corrida, de lá para cá de cá para lá. e tu por aí e eu por cá. e se um dia chegasses a ler isto devias pensar: “Grande maluco! Este rapaz deixa muito a desejar”. é precisamente aí que o toque na ferida se faz sem se esperar. é um desejo que não passa apesar do tempo passar. mas a vida é precisamente isso. criam-se metas para nunca as alcançar porque adianta-se o passo mas às vezes é preciso voltar atrás olhar parar e ali ficar à espera. mas espera não vás já. olha lá então como tens passado? e assim termino esta tão mal falada carta ou desabafo ou coisa parecida a tal ou lá o que lhe quiserem chamar.



afinal é um género de carta num pseudo desabafo dentro do género a tal.


prometo telefonar-te.