30.12.08

...soberbo este moscato. todo o prazer de não se ser...














_ leu alguma vez uma gramática?
_ eu nunca. tive sempre uma aversão profunda a saber como se dizem as coisas...a minha única simpatia nas gramáticas ia para as excepções e para os pleonasmos...escapar às regras e dizer coisas inúteis resume bem a atitude essencialmente moderna...não é assim que se diz?...
_ absolutamente...o que tem de antipático nas gramáticas (já reparou na deliciosa impossibilidade de estarmos falando neste assunto?) _ o que há de mais antipático nas gramáticas é o verbo os verbos...são as palavras que dão sentido às frases...uma frase honesta deve sempre poder ter vários sentidos...os verbos! um amigo meu que se suicidou_ cada vez que tenho uma conversa um pouco longa suicido um amigo _ tinha tencionado dedicar toda a sua vida a destruir verbos...
_ ele porque se suicidou?
_ espere ainda não sei...ele pretendia descobrir e fixar o modo de não completar as frases sem parecer fazê_lo. ele costumava dizer_me que procurava o micróbio da significação...suicidou_se é claro porque um dia reparou na responsabilidade imensa que tomara sobre si...a importância do problema deu_lhe cabo do juízo...um revólver e...
_ ah não...isso de modo algum...não vê que não podia ser um revólver?... um homem desses nunca dá um tiro na cabeça...o senhor pouco se entende com os amigos que nunca teve...é um defeito grande sabe?... a minha melhor amiga _ uma deliciosa rapaz que eu inventei ...
_ dão_se bem?
_ tanto quanto possível...mas essa rapariga não imagina...






bernardo soares no livro do desassossego páginas 303 e 304















há quanto tempo não me sinto bem. não que tenha vontade de morrer muito menos de me suicidar. isso são coisas de fracos. e eu não sou fraca. recupero forças e armazeno energias onde menos espero. bastam pequenas coisas. bastou_me um recado. atravesso_me assim nos dias em que não estou mas continuo sendo. correm_me os anos na cara de quem apesar de tudo não consegue ser contente. e é preciso ser_se feliz? é nesta tristeza que me veste desde que nasci que me sinto completa. inteira de vez. absurdamente contente. julgo_me em devaneios de orgias simples. pouco me chega para contentar. o que para muitos seria muito pouco considero eu imenso. e para quê pedir demasiado? no pouco tempo que me resta pouca coisa seria muito. é que neste final de ano par preparo_me para nada de novo me acontecer. contrariamente à maioria sinto_me bem por isso. durante trezentos e sessenta e cinco dias esperei por um milagre. porque eu acredito em milagres. mas um não me chega. queria no mínimo trezentos e sessenta e cinco milagres. um por dia. era justo. para quê tanto milagre? não faço a mínima idéia. mas sei que os queria. há falta de milagres. pego no copo e bebo um moscato dolce aromatico di qualità. resta_me embebedar_me!




...soberbo este moscato. todo o prazer de não se ser...







há milagres que não se contam a ninguém. ficam só connosco. e este é o meu.







fotografias de valentine

24.12.08

_ acreditas em anjos?








que de infernos e purgatórios e paraísos tenho em mim__ e quem me conhece um gesto discordando da vida...a mim tão calmo e tão plácido?




bernardo soares










porque hoje a noite deve ser calma. e plácida. quero um piano preto de cauda um violino de madeira uma pintura de chagall uma música de liszt e um pessoa sem ser fernando.













fotografia de elena ray

21.12.08

festejo_me a mim!













quero lá saber se faço anos. já não festejo o dia nem os anos. festejo_me a mim.






















No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida.


Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui - ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!








O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas)
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .









Pára, meu coração!
Não penses!
Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias. Serei velho quando o for. Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...




aniversário de álvaro de campos
















já não festejo o dia dos meus anos. nem o dia nem os anos. festejo_me a mim!quero lá saber se faço anos. deixo isso para os outros. para os outros que se festejam sem saber porque que se festejam por isso.celebro_me assim em mim. aceito_me nas caídas obrigo_me a ir sou resistente na viagem. não quero mapa. não quero sinais. não quero sentidos. destino_me assim à deriva. persigo utopias. e quero festejar à minha maneira. sem gente sem prendas sem festa sem vinho. celebro_me no sossego do meu livro. o intocável na mesa de cabeceira. o que não se anota não se rasura não se aponta não se sublinha. lê_se para dentro. lê_se para mim. quero lá saber se faço anos. já não festejo o dia nem os anos. festejo_me a mim.






apesar disso um brinde!









fotografias de b. berenika

19.12.08

_
_ sentes?
_ sinto.
_ sente_se...
_ se sente!
_ sim!









o peso de sentir! o peso de ter que sentir!


bernardo soares
no livro do desassossego pág. 141













ocorre_me morrer de vez em quando. esse mistério de não ser nem estar. transporto comigo ter de sentir isso. sentir o peso de ter de sentir. assim ocorre_me a morte de vez em quando. poderia muito bem ser em fumo. servia_me assim de mortalha. mas este peso de ter que sentir. não o quero sem ti.assim ocorre_me ter de morrer de vez em quando. como se isso fizesse algum sentido. ocorre_me a morte. ocorre_me o não sentir. sentido. ocorre_me tudo o que o faz. raios te partam!











fotografias de sabine l.

13.12.08

_ estás aí?












_ estás aí?
_ faço de conta
_ fazes de conta que os amas...
_ claro que não. pior que frio é ser_se gelo













irrita_me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes. a sua vida humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de angústias para uma sensibilidade verdadeira. mas como a sua vida verdadeira é vegetativa o que sofrem passa por eles sem lhes tocar na alma e vivem uma vida que se pode comparar somente à de um homem com dor de dentes que houvesse recebido uma fortuna _ a fortuna autêntica de estar vivendo sem dar por isso o maior dom que os deuses concedem porque é o dom de lhes ser semelhante superior como eles (ainda que de outro modo) à alegria e à dor.


por isto contudo os amo a todos. meus queridos vegetais!



bernardo soares no livro do desassossego pág.266

























não tenho nenhum livro de desassossego. o desassossego sou eu. se um dia o tiver estará marcado por folhas em branco. propositadamente brancas. se um dia se sujarem será de pó que se acumula em mim. sinto_me assim numa prateleira . aquela mais alta da estante onde ninguém chega. nem para soprar nem para folhear nem para tocar nem para ler nem para anotar nem para sublinhar. incapaz de ser violada ou violentada. ali amorfa entediante perfeita pasmaceira. mas apesar disso se alguém se ousar a desinquietar_me nada feito. não há resposta possível. não se reage. esta hibernação de dezembro vai dando cabo de mim. violenta_me a razão e destrói_me o sentido.



















faz de conta que desamo
faz de conta que desgosto
faço de conta que desdenho

faço de conta


levas_me em conta?































fotografias de sabine l.

11.12.08

_ estás a dormir?
_ não. só de olhos fechados. deixa_me estar.




é nesta hora que gosto mais de estar comigo. e quando assim se está nada como me programar para os tempos que se me avizinham. dias difíceis que me correm. e deixá_los correr assim. ao contrário de muitos vou ficar cinco dias espojada no meio do chão da sala resgardada entre quatro paredes um tecto e duas almas. assim ali estendida sem fazer nada. de braços fechados e pernas cruzadas. nada como inventar estes dias inúteis. quase uma semana onde não me aconteça nada. nem nascer nem morrer nem ressuscitar nem beber nem comer nem falar. só fumar claro. de vinte e um a vinte e cinco não vou fazer nada. absolutamente nada de nada. vou esfregar_me em tédio entregar_me à inércia à passividade. vou despojar_me dos diabos. não há razão para tal. apenas um enorme enormíssimo cansaço. um fechar de olhos manter_me calada e por fim desolar_me.









quem entrar sirva_se. está à vontade.





fotografia de irma atanassova

8.12.08

tão bem
se beija de boca fechada


_ acabou_se a luz
_ acabaram_se as cores
_ acabou_se o nada
_ começa a beijar_me





























não tem para seu uso um único espelho. enrola o turbante ao ar livre no seu jardim de olhos postos no musgo das árvores. conhece_lhe a respiração quando encosta a cara ao seu corpo à clavícula onde o osso lhe aclara a pele. porém se ela lhe perguntar de que cor são os seus olhos e apesar da adoração que lhe tem não será pensa ela capaz de responder. limitar_se_á a rir e a tentar adivinhar mas se ela de olhos negros lhe disser fechando os olhos que os tem verdes ele acreditará. consegue fitar atentamente os olhos de uma pessoa sem fixar de que cor são do mesmo modo que a comida quando lhe chega à garganta ou ao estômago é mais simples textura do que sabor ou objecto determinado.


quando alguém fala ele observa_lhe a boca e não os olhos com as suas cores a seu ver sempre mutáveis consoante a luz de uma sala ou o momento do dia. as bocas revelam a insegurança ou a presunção ou qualquer outro ponto no espectro do carácter. para ele são a feição mais completa de um rosto. ele nunca sabe ao certo o que uns olhos revelam. mas consegue descortinar nas bocas uma nuvem de indiferença uma sugestão de ternura.




michael ondaatje o paciente inglês pág. 155




































é de noite que me fica quase sempre este gosto amargo na boca. a questão de me conseguires provocar sem nada fazeres mói_me o juízo e insulta_me os sentidos. estendo_me de braços abertos querendo que me conheças de corpo e alma inteira e cara lavada e mãos limpas para te receber. sempre a mesma de abraços vazios. acento os pés sete palmos abaixo da terra. afundo_me em erva. abro a cara à claridade do desejo mais sujo que posso ter e que me alivia a língua de incertezas. certeza uma. a de assim ser de braços vazios e boca fechada e cara tapada. quisesses tu colar_me as mãos nas plantas dos pés para me segurar. seria medonha a força do subir. como que em vertigem iria_se cair ao topo do céu esse que me ampara aqui entre ti e a vontade de ir. afundar_te comigo. é de noite que me fica assim este gosto amargo na boca. quando me atiro contigo e me afundo mais. corro_te no corpo todo sem nunca te tocar. não preciso. conheço_o de cor. quisesses tu saber o que me vai no tacto. essa cor de mel que me transpira nos dedos. desce comigo sete palmos abaixo e afunda_te assim no fim do mundo. onde a boca se escalda a língua se arde e a garganta se queima. um doce inferno. agarram_se as cinzas e cobrem_se as caras. os braços esses continuam vazios. nesta partida não se pode tocar. afastam_se os corpos a olhar falso a pedido da jogada. larga_me. maldito o diabo. tão bem se beija de boca fechada.








_ acabou_se a luz
_ acabaram_se as cores
_ acabou_se o nada
_ acaba_se o fim assim sem beijar










fotografias de petr drozdov

4.12.08

não. hoje não me digas porque só me ocorre responder_te tristeza

_ diz...












diz...







_ digo?
_ não digas
_ mas posso dizer?
_ não. hoje não me digas porque só me ocorre responder_te tristeza
_ diz..

















"pergunto_lhe se é costume estar_te triste como nós estamos. diz que há_de passar com a noite assim que ela chegar. digo_lhe que não é só por ter sido durante o dia que estou numa tristeza que já esperava e que só vem de mim. que sempre fui triste. que vejo essa tristeza também nas fotografias em que sou muito pequena. que hoje esta tristeza reconhecendo_a embora como a que sempre tive poderia quase dar_lhe o meu nome de tal modo se me assemelha. hoje digo_lhe que é um bem_estar esta tristeza. falo sem esperar resposta. digo_lhe que a minha mãe grita aquilo em que crê como os enviados de deus. grita que não se deve esperar nada nunca nem de pessoa alguma nem de estado nenhum nem de deus algum. eu digo que não faço da desgraça em que me encontro uma questão pessoal."





marguerite duras in o amante páginas 66 e 67



































sou quase perfeita por isso o de não gostar que me obriguem o não gostar que me digam o que devo dizer o que devo fazer. se não sei tocar piano nem cantar operetas que fazer? escrevo. se sei escrever? não. não sei. que ninguém me diga o que devo ou não escrever. que ninguém me diga quando ou não o fazer. que ninguém me omita o vómito de o ler.que ninguém me minta se o sente feio. cru. sujo. se o sei fazer? se sei. tudo o que me mói o juízo e se me atravessa na tripa estampo_o na cara daquele que não tem cara para mo dizer. as palavras soam_me bem e sabem_me melhor ainda por cada vez que as despejo na tinta. sou quase perfeita por isso pelo diz que não disse ou não era suposto ser dito porque muita coisa se diz sem se dizer e sem se querer dizer e dizer_se assim é como se desdizer diga_se o que se disser fica tudo por dizer e o diz que diz e não se diz talvez se diga de uma só vez. sou quase perfeita por isso mas não o posso dizer. nada mais me ocorre dizer a não ser dizer_te tristeza.

















_ digo?
_ não digas...
_ mas posso ou não dizer?
_ não. hoje não me digas porque só me ocorre responder_te tristeza.
_ diz...













fotografias de josi povic
e grzegorz sowa