30.12.08

...soberbo este moscato. todo o prazer de não se ser...














_ leu alguma vez uma gramática?
_ eu nunca. tive sempre uma aversão profunda a saber como se dizem as coisas...a minha única simpatia nas gramáticas ia para as excepções e para os pleonasmos...escapar às regras e dizer coisas inúteis resume bem a atitude essencialmente moderna...não é assim que se diz?...
_ absolutamente...o que tem de antipático nas gramáticas (já reparou na deliciosa impossibilidade de estarmos falando neste assunto?) _ o que há de mais antipático nas gramáticas é o verbo os verbos...são as palavras que dão sentido às frases...uma frase honesta deve sempre poder ter vários sentidos...os verbos! um amigo meu que se suicidou_ cada vez que tenho uma conversa um pouco longa suicido um amigo _ tinha tencionado dedicar toda a sua vida a destruir verbos...
_ ele porque se suicidou?
_ espere ainda não sei...ele pretendia descobrir e fixar o modo de não completar as frases sem parecer fazê_lo. ele costumava dizer_me que procurava o micróbio da significação...suicidou_se é claro porque um dia reparou na responsabilidade imensa que tomara sobre si...a importância do problema deu_lhe cabo do juízo...um revólver e...
_ ah não...isso de modo algum...não vê que não podia ser um revólver?... um homem desses nunca dá um tiro na cabeça...o senhor pouco se entende com os amigos que nunca teve...é um defeito grande sabe?... a minha melhor amiga _ uma deliciosa rapaz que eu inventei ...
_ dão_se bem?
_ tanto quanto possível...mas essa rapariga não imagina...






bernardo soares no livro do desassossego páginas 303 e 304















há quanto tempo não me sinto bem. não que tenha vontade de morrer muito menos de me suicidar. isso são coisas de fracos. e eu não sou fraca. recupero forças e armazeno energias onde menos espero. bastam pequenas coisas. bastou_me um recado. atravesso_me assim nos dias em que não estou mas continuo sendo. correm_me os anos na cara de quem apesar de tudo não consegue ser contente. e é preciso ser_se feliz? é nesta tristeza que me veste desde que nasci que me sinto completa. inteira de vez. absurdamente contente. julgo_me em devaneios de orgias simples. pouco me chega para contentar. o que para muitos seria muito pouco considero eu imenso. e para quê pedir demasiado? no pouco tempo que me resta pouca coisa seria muito. é que neste final de ano par preparo_me para nada de novo me acontecer. contrariamente à maioria sinto_me bem por isso. durante trezentos e sessenta e cinco dias esperei por um milagre. porque eu acredito em milagres. mas um não me chega. queria no mínimo trezentos e sessenta e cinco milagres. um por dia. era justo. para quê tanto milagre? não faço a mínima idéia. mas sei que os queria. há falta de milagres. pego no copo e bebo um moscato dolce aromatico di qualità. resta_me embebedar_me!




...soberbo este moscato. todo o prazer de não se ser...







há milagres que não se contam a ninguém. ficam só connosco. e este é o meu.







fotografias de valentine

24.12.08

_ acreditas em anjos?








que de infernos e purgatórios e paraísos tenho em mim__ e quem me conhece um gesto discordando da vida...a mim tão calmo e tão plácido?




bernardo soares










porque hoje a noite deve ser calma. e plácida. quero um piano preto de cauda um violino de madeira uma pintura de chagall uma música de liszt e um pessoa sem ser fernando.













fotografia de elena ray

21.12.08

festejo_me a mim!













quero lá saber se faço anos. já não festejo o dia nem os anos. festejo_me a mim.






















No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida.


Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui - ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!








O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas)
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .









Pára, meu coração!
Não penses!
Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias. Serei velho quando o for. Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...




aniversário de álvaro de campos
















já não festejo o dia dos meus anos. nem o dia nem os anos. festejo_me a mim!quero lá saber se faço anos. deixo isso para os outros. para os outros que se festejam sem saber porque que se festejam por isso.celebro_me assim em mim. aceito_me nas caídas obrigo_me a ir sou resistente na viagem. não quero mapa. não quero sinais. não quero sentidos. destino_me assim à deriva. persigo utopias. e quero festejar à minha maneira. sem gente sem prendas sem festa sem vinho. celebro_me no sossego do meu livro. o intocável na mesa de cabeceira. o que não se anota não se rasura não se aponta não se sublinha. lê_se para dentro. lê_se para mim. quero lá saber se faço anos. já não festejo o dia nem os anos. festejo_me a mim.






apesar disso um brinde!









fotografias de b. berenika

19.12.08

_
_ sentes?
_ sinto.
_ sente_se...
_ se sente!
_ sim!









o peso de sentir! o peso de ter que sentir!


bernardo soares
no livro do desassossego pág. 141













ocorre_me morrer de vez em quando. esse mistério de não ser nem estar. transporto comigo ter de sentir isso. sentir o peso de ter de sentir. assim ocorre_me a morte de vez em quando. poderia muito bem ser em fumo. servia_me assim de mortalha. mas este peso de ter que sentir. não o quero sem ti.assim ocorre_me ter de morrer de vez em quando. como se isso fizesse algum sentido. ocorre_me a morte. ocorre_me o não sentir. sentido. ocorre_me tudo o que o faz. raios te partam!











fotografias de sabine l.

13.12.08

_ estás aí?












_ estás aí?
_ faço de conta
_ fazes de conta que os amas...
_ claro que não. pior que frio é ser_se gelo













irrita_me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes. a sua vida humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de angústias para uma sensibilidade verdadeira. mas como a sua vida verdadeira é vegetativa o que sofrem passa por eles sem lhes tocar na alma e vivem uma vida que se pode comparar somente à de um homem com dor de dentes que houvesse recebido uma fortuna _ a fortuna autêntica de estar vivendo sem dar por isso o maior dom que os deuses concedem porque é o dom de lhes ser semelhante superior como eles (ainda que de outro modo) à alegria e à dor.


por isto contudo os amo a todos. meus queridos vegetais!



bernardo soares no livro do desassossego pág.266

























não tenho nenhum livro de desassossego. o desassossego sou eu. se um dia o tiver estará marcado por folhas em branco. propositadamente brancas. se um dia se sujarem será de pó que se acumula em mim. sinto_me assim numa prateleira . aquela mais alta da estante onde ninguém chega. nem para soprar nem para folhear nem para tocar nem para ler nem para anotar nem para sublinhar. incapaz de ser violada ou violentada. ali amorfa entediante perfeita pasmaceira. mas apesar disso se alguém se ousar a desinquietar_me nada feito. não há resposta possível. não se reage. esta hibernação de dezembro vai dando cabo de mim. violenta_me a razão e destrói_me o sentido.



















faz de conta que desamo
faz de conta que desgosto
faço de conta que desdenho

faço de conta


levas_me em conta?































fotografias de sabine l.

11.12.08

_ estás a dormir?
_ não. só de olhos fechados. deixa_me estar.




é nesta hora que gosto mais de estar comigo. e quando assim se está nada como me programar para os tempos que se me avizinham. dias difíceis que me correm. e deixá_los correr assim. ao contrário de muitos vou ficar cinco dias espojada no meio do chão da sala resgardada entre quatro paredes um tecto e duas almas. assim ali estendida sem fazer nada. de braços fechados e pernas cruzadas. nada como inventar estes dias inúteis. quase uma semana onde não me aconteça nada. nem nascer nem morrer nem ressuscitar nem beber nem comer nem falar. só fumar claro. de vinte e um a vinte e cinco não vou fazer nada. absolutamente nada de nada. vou esfregar_me em tédio entregar_me à inércia à passividade. vou despojar_me dos diabos. não há razão para tal. apenas um enorme enormíssimo cansaço. um fechar de olhos manter_me calada e por fim desolar_me.









quem entrar sirva_se. está à vontade.





fotografia de irma atanassova

8.12.08

tão bem
se beija de boca fechada


_ acabou_se a luz
_ acabaram_se as cores
_ acabou_se o nada
_ começa a beijar_me





























não tem para seu uso um único espelho. enrola o turbante ao ar livre no seu jardim de olhos postos no musgo das árvores. conhece_lhe a respiração quando encosta a cara ao seu corpo à clavícula onde o osso lhe aclara a pele. porém se ela lhe perguntar de que cor são os seus olhos e apesar da adoração que lhe tem não será pensa ela capaz de responder. limitar_se_á a rir e a tentar adivinhar mas se ela de olhos negros lhe disser fechando os olhos que os tem verdes ele acreditará. consegue fitar atentamente os olhos de uma pessoa sem fixar de que cor são do mesmo modo que a comida quando lhe chega à garganta ou ao estômago é mais simples textura do que sabor ou objecto determinado.


quando alguém fala ele observa_lhe a boca e não os olhos com as suas cores a seu ver sempre mutáveis consoante a luz de uma sala ou o momento do dia. as bocas revelam a insegurança ou a presunção ou qualquer outro ponto no espectro do carácter. para ele são a feição mais completa de um rosto. ele nunca sabe ao certo o que uns olhos revelam. mas consegue descortinar nas bocas uma nuvem de indiferença uma sugestão de ternura.




michael ondaatje o paciente inglês pág. 155




































é de noite que me fica quase sempre este gosto amargo na boca. a questão de me conseguires provocar sem nada fazeres mói_me o juízo e insulta_me os sentidos. estendo_me de braços abertos querendo que me conheças de corpo e alma inteira e cara lavada e mãos limpas para te receber. sempre a mesma de abraços vazios. acento os pés sete palmos abaixo da terra. afundo_me em erva. abro a cara à claridade do desejo mais sujo que posso ter e que me alivia a língua de incertezas. certeza uma. a de assim ser de braços vazios e boca fechada e cara tapada. quisesses tu colar_me as mãos nas plantas dos pés para me segurar. seria medonha a força do subir. como que em vertigem iria_se cair ao topo do céu esse que me ampara aqui entre ti e a vontade de ir. afundar_te comigo. é de noite que me fica assim este gosto amargo na boca. quando me atiro contigo e me afundo mais. corro_te no corpo todo sem nunca te tocar. não preciso. conheço_o de cor. quisesses tu saber o que me vai no tacto. essa cor de mel que me transpira nos dedos. desce comigo sete palmos abaixo e afunda_te assim no fim do mundo. onde a boca se escalda a língua se arde e a garganta se queima. um doce inferno. agarram_se as cinzas e cobrem_se as caras. os braços esses continuam vazios. nesta partida não se pode tocar. afastam_se os corpos a olhar falso a pedido da jogada. larga_me. maldito o diabo. tão bem se beija de boca fechada.








_ acabou_se a luz
_ acabaram_se as cores
_ acabou_se o nada
_ acaba_se o fim assim sem beijar










fotografias de petr drozdov

4.12.08

não. hoje não me digas porque só me ocorre responder_te tristeza

_ diz...












diz...







_ digo?
_ não digas
_ mas posso dizer?
_ não. hoje não me digas porque só me ocorre responder_te tristeza
_ diz..

















"pergunto_lhe se é costume estar_te triste como nós estamos. diz que há_de passar com a noite assim que ela chegar. digo_lhe que não é só por ter sido durante o dia que estou numa tristeza que já esperava e que só vem de mim. que sempre fui triste. que vejo essa tristeza também nas fotografias em que sou muito pequena. que hoje esta tristeza reconhecendo_a embora como a que sempre tive poderia quase dar_lhe o meu nome de tal modo se me assemelha. hoje digo_lhe que é um bem_estar esta tristeza. falo sem esperar resposta. digo_lhe que a minha mãe grita aquilo em que crê como os enviados de deus. grita que não se deve esperar nada nunca nem de pessoa alguma nem de estado nenhum nem de deus algum. eu digo que não faço da desgraça em que me encontro uma questão pessoal."





marguerite duras in o amante páginas 66 e 67



































sou quase perfeita por isso o de não gostar que me obriguem o não gostar que me digam o que devo dizer o que devo fazer. se não sei tocar piano nem cantar operetas que fazer? escrevo. se sei escrever? não. não sei. que ninguém me diga o que devo ou não escrever. que ninguém me diga quando ou não o fazer. que ninguém me omita o vómito de o ler.que ninguém me minta se o sente feio. cru. sujo. se o sei fazer? se sei. tudo o que me mói o juízo e se me atravessa na tripa estampo_o na cara daquele que não tem cara para mo dizer. as palavras soam_me bem e sabem_me melhor ainda por cada vez que as despejo na tinta. sou quase perfeita por isso pelo diz que não disse ou não era suposto ser dito porque muita coisa se diz sem se dizer e sem se querer dizer e dizer_se assim é como se desdizer diga_se o que se disser fica tudo por dizer e o diz que diz e não se diz talvez se diga de uma só vez. sou quase perfeita por isso mas não o posso dizer. nada mais me ocorre dizer a não ser dizer_te tristeza.

















_ digo?
_ não digas...
_ mas posso ou não dizer?
_ não. hoje não me digas porque só me ocorre responder_te tristeza.
_ diz...













fotografias de josi povic
e grzegorz sowa

23.11.08

xeque mate

_ estupor!
_ e porque dizes isso se não o sentes?
_ porque não posso continuar calada.










"nunca bom dia boa noite bom ano. nunca obrigado. nunca falar. nunca necessidade de falar. tudo fica mudo longe. todos os dias tentamos matar_nos matar. não só não nos falamos como não nos olhamos. a partir do momento em que somos vistos não podemos olhar. olhar é ter um movimento de curiosidade para e por é descer. nenhuma pessoa olhada vale o olhar sobre ela. é sempre desonroso. a palavra conversa é banida. creio que é ela que melhor aqui reflecte a vergonha e o orgulho. qualquer comunidade seja ela familiar ou outra é_nos odiosa degradante. estamos juntos numa vergonha de princípio que é ter de viver a vida."




marguerite duras in o amante pág. 83































_ estupor!
_ e porque dizes isso se não o sentes?
_ porque não posso continuar calada.














não tenho vergonha de princípio passar por mal educada. pretendo só insultar_te. desafiar_te a uma conversa em frente a um suposto tabuleiro qualquer na minha bancada da sala. alojemo_nos desconfortavelmente nas cadeiras que nos servem de suporte a afrontas comuns de mentiras e verdades. quero jogar à verdade ou consequências. lanças as peças ao estilo de desajeitada és e assim irás continuar a manifestar_te. talvez desta me sirva de sustento todas as estratégias que contigo aprendi. deixei_me de evasivas fugas e defesas. o meu jogo agora é ataque. olhas_me desconfiado como quem não pensa mas afinal que mal te fiz para merecer tamanha recarga. não se trata de vingança meu caro. caros são os sinais que me ficaram. marcas de desdém má ventura sinónimos de mal amada. por azar é desta que as pretas amargam. tens um nó na garganta tanta secura na língua boca fechada. as brancas minimizam_te o raciocínio de saber hoje este jogar. brutal. fico feliz. há a cada par e passo um ódio em cada jogada. o de não se saber sequer jogar porque não há regras neste nosso tabuleiro. salve_se. olhe salve_se meu caro adversário. a raínha levantou_se e xeque. xeque mate!











estupor. é o que me apetece dizer_te. não mereces ser ouvido. não mereces ser olhado. não te permito que me leias. estás proibído de entrar em minha casa.










fotografias de jay morrison

17.11.08

cem notas à parte e muitas em rodapé

cem notas à parte e muitas em rodapé





preciso bater a porta fechar a janela bater o pé preciso de um pouco de paz preciso de não me arrepender de esquecer de algum sentimento preciso de um pouco de paz preciso não ouvir falar não escutar não dizer e de não ler preciso de um pouco de paz preciso não atender não deixar dialogar de não escrever preciso de um pouco de paz preciso não querer não tocar não sentir de não temer preciso de um pouco de paz preciso não fotografar não pintar preciso de um pouco de paz preciso de não estar aqui de me ausentar de me presentear com um pouco de paz preciso dos meus infernos de não me limpar preciso de me sujar com um pouco de paz preciso continuar viva para não morrer já preciso de alertar de vomitar de insultar e de voltar a ser má menina preciso que me deixem em paz






fotografia de sabine l.

3.11.08

não compreendo e não pretendo continuar

fim











"não cobices a mulher do teu próximo nem desejes para ti a casa do teu próximo nem o campo nem o escravo nem a escrava nem o boi nem o jumento nem coisa alguma que pertença ao teu próximo"



décimo mandamento êxodo 20, 17


























não pretendo sem sombra de dúvida continuar a publicar katia chausheva berenika dimitri ou outros tantos que tais. fazem parte do meu portfólio fotográfico de memórias que teimo em guardar nas pastas.



não pretendo continuar de certeza a escrever sobre o que me ocupa os sentidos e me dá voltas à alma. esta indisgestão fez_me vomitar. que me adianta dizer por aqui de minhas injustiças se justa me desejo e tenho de me calar? que tormentas me vão desgastando neste lugar tão por si já farto que me faz cumprir vida num caderno que se me escorre sem verdades?



não pretendo continuar ligada ao que me move sem sentido agora que tanta falta me faz. pretendo continuar a pecar. cada vez mais o desejo. sem desafios a inquisidores de almas. queimam_se_me as páginas nas fogueiras e sou eu a primeira a soprar para atear. "o nome da rosa". livros. e livros. veneno. e veneno. venenosos. venenosas. sacrilégio este o de dizer um nada. mulheres nuas meus senhores? pois está claro. falsas morais. ateiam_se os sentidos que logo de seguida se apagam em água benta bentida água.





por ventura se encontrou palavra de ofensa inveja ou maldita?






















hoje fiquei a pensar se vale a pena continuar
sem vontade de apagar tudo o que aqui tenho tive vontade de não voltar








nota de rodapé: não é fim mas quase. não tenho vontade de continuar


fotografias de ville kansanen








31.10.08

hoje só quero fumar

.














hoje só quero fumar. o fumo é a minha mortalha.
























não. hoje não. amanhã logo se verá. não quero falar contigo. não quero falar com ninguém. não quero falar de nada. não quero dizer para não ter de mentir. não quero sentir. não quero nada. não me quero tão pouco. e aliás. amanhã logo se verá. não quero pessoas. não quero livros. não quero beijar. não quero nada de nada. hoje só quero fumar. amanhã logo se verá.







hoje só quero fumar. o fumo é a minha mortalha. amanhã logo se verá.




























vocês vão morrer todos saudáveis






fotografias de gretchen wintersberry

















27.10.08

ainda não. não. amanhã. só. de manhã

notas à parte









se me morres não faço nada
sento_me a esperar




















" _ eu sou a que não procuras.
só então me lembrei que era ali que viviam em liberdade os internados mansos do manicómio municipal. tive que me identificar como jornalista perante a direcção do hospital para que um enfermeiro me conduzisse ao pavilhão das urgências. no caderno de admissões estavam dois dados: rosalba ríos dezasseis anos sem profissão conhecida. diagnóstico: comoção cerebral. prognóstico: reservado.

atravessámos uma sala a abarrotar com um forte cheiro a ácido fénico e os doentes enroscados nas camas. ao fundo num quarto só estendida numa maca metálica estava a que procurávamos. tinha a cabeça coberta de ligaduras a cara indecifrável inchada e roxa mas bastou_me ver_lhe os pés para saber que não era. só então me lembrei de perguntar a mim mesmo: que teria feito se tivesse sido ela?"



pág.89







"_ diga_me senhor: não é o que escreve as cartas de amor no jornal?
nunca podia ter imaginado que uma garota adormecida pudesse causar em alguém semelhantes estragos. fugi da fábrica sem me despedir nem pensar sequer se alguma daquelas virgens de purgatório era afinal a que eu procurava. quando saí dali o único sentimento que me restava na vida era a vontade de chorar."



pág. 90






















há que saber ficar para se partir a seguir. só depois. não é assim que se desiste sem mais nem menos do nada porque se calhar queres ir. há que saber preparar o caminho para se deixar. então não será que talvez já não te importas com nada e o caminho que deitas atrás até ao fechar das portas e do partir pedra sem atirar é o mesmo que me traçaste. por ventura te vais sem te ralares quem fica aqui parada. desvias_te assim do que começaste a criar sem querer semear nenhum lar. nem há casas. nem dores de partos. vidas adormecidas. só sonâmbulares. feridas a chagar. segredos sem contar.e sais_me assim sem avisar? houve entrada?


se me morres não faço nada
sento_me a esperar.

há que saber dar para depois saber tirar. haja lágrimas mas não me morras já. ainda não. não. amanhã. só. de manhã. porque se faz tarde para eu aí chegar.









notas à parte esqueci_me de te dizer o tal de infinitamente
que fique por ali só entre mim e mim






















excertos do livro memória das minhas putas tristes
de gabriel garcía márquez

fotografias de kalua krynska

22.10.08

post scriptum

post scriptum















há doenças piores que as doenças
há dores que não doem nem na alma
mas que são dolorosas mais que as outras
há angústias sonhadas mais reais
que as que a vida nos traz há emoções
sentidas só como o imaginá_las
que são mais nossas do que a nossa vida.
há tanta cousa que sem existir
existe existe demoradamente
e demoradamente é nossa é nós
por sobre a alma a adejar inútil
do que não foi nem pôde ser e é tudo.

dá_me mais vinho porque a vida é nada.



19.11.1935
in poesia do eu de fernando pessoa pág.349

















há nas horas um tempo mágico que não se vê nunca nos ponteiros de nenhum relógio. aquele em que o tempo é de não e de nada. outros há em que se demora em atravessar. demoradamente não tarda. vagarosamente passa. não. não adianta olhar para dias de ar. são dias de brancas vivas. brandas vidas. fracos abraços. desventura de tempo este o nosso.

dá_me antes um rio de marés com sal de amar. bravo. dá_me antes um dia que não faça já parte de nenhum calendário. dá_me o não de um nada. dá_me. porque há horas em que o não nada mais é a não ser de nada. mas dá_me.

alento_me ao alto algures rumo sem norte sem conseguir tocar.












post scriptum: de querer tanto escrever inscrevo_te na página. creio assim ser que na dúvida de o tentar ser ou escrevê_lo ficas como que como posso falar mais ainda dentro em mim apesar de saber que não acontecerá. mas que fazer se acredito sim que tanto o queira. não me digas que talvez não será.









algures sem rumo nem norte






fotografias de frizt faber

16.10.08

entre parêntesis

entre parêntesis












de momento não me ocorre nada para dizer. volto para casa fecho as portas encerro as janelas e acendo as velas. e os cigarros também.




























não: toda a palavra é a mais. sossega!
deixa da tua voz só o silêncio anterior!
como um mar vago a uma praia deserta chega
ao meu coração a dor.

que dor? não sei. quem sabe saber o que sente?
nem um gesto. sobreviva apenas ao que tem que morrer
o luar e a hora e o vago perfume indolente
e as palavras por dizer.



l'inconnue
12.6.1918
in poesia do eu de fernando pessoa pág.122


















"_ tu persegues uma utopia!"
estática fiquei colada ao chão do quarto. por instantes um déjà vu. trintas e tais anos a viver assim. correndo atrás do que não existe.











até quando?
até ao dia em que a terra me cobrir porque tenho pavor a fogo. e de noite sempre a erva é mais fresca que qualquer aragem que não me entre pelo quarto adentro.









fotos de larafairie









12.10.08

muito muito mais que muito imenso

três pontos ...













tem música tem violino tem piano tem pintura tem toda a cor soberba em cada beijo teu. tem vida. tem o nascer.






















tu não me decidas morrer senão serei eu a levantar_te da terra para me deitar primeiro































" veronika empurrou a porta da sala de estar, chegou diante do piano, abriu a tampa. e _ com toda a força _ bateu com as mãos no teclado. um acorde louco, sem nexo, irritante, ecoando pelo ambiente vazio, batendo nas paredes, voltando aos seus ouvidos sob a forma de um ruído agudo, que parecia arranhar a sua alma. mas isso era o melhor retrato da sua alma naquele momento.

tornou a bater com as mãos, e mais uma vez as notas dissonantes reverberaram por toda a parte.

"sou louca." posso fazer isto. posso odiar, e posso espancar o piano. desde quando os loucos sabem colocar as notas em ordem?

bateu no piano uma, duas, dez, vinte vezes _ e, de cada vez que o fazia, o seu ódio parecia diminuir, até que passou por completo. então, novamente, uma profunda paz a inundou."





páginas 87 e 88










"talvez no início, estranhes o facto de que não exista mais música durante a noite: no entanto, sempre que a lua aparecer, haverá alguém disposto a tocar sonatas, principalmente num sanatório _ já que todos nós aqui somos lunáticos."




pág. 155

















"há muitos anos atrás, quando eu era uma criança e a minha mãe me obrigava a aprender piano, eu dizia a mim mesma que só seria capaz de tocá_lo bem quando estivesse apaixonada. ontem à noite, pela primeira vez na minha vida, senti que as notas saíam dos meus dedos como se eu não tivesse controlo algum sobre o que fazia."



pág. 190






















mais um dia nos meus braços. horas que se transpiram em frases inacabadas ou de palavras ditas que se ouvem segredar. visões benditas essas tuas as que te olho sem o dizer. continuas_te assim de olhos bem fechados e falas. falas tudo o que não queres dizer. por cada abraço meu é mais uma tecla que se ganha no tocar. a clave começa a nascer. espera_nos um palco em que enfim seremos nós. eu porque te toco. inteira. tu. porque queres saber. será assim o meu dueto a quatro mãos. enfim soberbo. tu nas brancas. eu com o preto. e tem uma cauda surda de sons. aqueles que os outros não irão ver. e nós como que em cada nota alta achamo_nos por fim em se merecer. sem mais nem menos foi só aceno foi só apelo. muito. muito mais que muito. imenso. com todo o querer.








"ela está morta.
mas a mulher mexeu_se e abriu os olhos.
_ o que se passa? _ perguntou veronika.
_ nada. ou melhor, um milagre: mais um dia de vida."




pág. 237






tem piano
tem pintura
tem toda a cor soberba em cada beijo teu
tem vida
tem o nascer
tu não me decidas morrer. senão serei eu a levantar_te da terra para me deitar primeiro






_ amo_te
_ muito
_ muito mais que muito
_ imenso









excertos do livro veronika decide morrer de paulo coelho
fotografias de irma atanassova