30.11.07

como o fumo.

agora
que lembro
as horas ao longo do tempo

desejo
voltar
voltar a ti
desejo-te encontrar

esquecida
em cada dia que passa
nunca mais revi a graça
dos teus olhos
que eu amei

má sorte
foi amor
que não retive
e se calhar distrai-me...
- qualquer coisa que encontrei.



alfama de pedro ayres magalhães
fort-archambault. depois sarah. desconheço. e no entanto nasci lá. em áfrica. aquele continente que inconscientemente guardo comigo sem nunca ter saboreado as cores quentes da terra. mas a terra chama. chama-se chade.
transportava-a como postais ilustrados. todos os meses recebia novas de lá. a mãe era a culpada. enviava-me uma colecção enorme de imagens. as que mostrava às minhas amigas que ficavam muito estranhas por tal sítio ser de verdade. pegava nos envelopes de avião e antes de os abrir ficava sobressaltada. ninguém tem mãe naquelas terras. mesmo no fim do mundo. nenhuma delas acreditava. mas mesmo assim só elas e as freiras do colégio me reconfortavam. era motivo para mais uma vez me convidarem a ler as escrituras na missa do próximo domingo. diziam que eu lia muito bem. ao contrário de outras amigas minhas que se atrapalhavam pela força do nervosismo de estar à frente de uma plateia vestida a preto e branco. a mim as cores neutras nunca me intimidaram. pelo contrário. senti-me sempre segura com elas. e assim lá ia eu ler tudo seguido de uma acentada. contínuamente e fazendo algumas pausas entoava as escrituras dos discípulos como se de um conto de fadas se tratasse. e lançava de vez em quando um olhar mais convincente para os lados da madre superiora que disfarçadamente se dignava a concordar comigo quando descrevia as aventuras do seu amado e querido senhor. depois no final presenteavam-me com palavras de agradecimento por ter ido muito bem.e tudo aquilo me admirava. porque após o almoço de domingo passava o resto da tarde sózinha errando pelos corredores do colégio do sagrado coração de maria. em portalegre. alentejo. alto.


até que dava por mim na antiga sala de convívio no segundo andar de volta de um piano. desafinado claro. mas era nessa hora que as tardes de domingo soavam mais alto. desertava-me por entre as teclas como se fosse um longo corredor . no final uma imensa escadaria a preto e branco que me conduzia a um suposto céu. novamente os neutros. sentia-me à vontade. e inventava-me vestindo a pele de uma grande pianista .era uma das melhores. dentro do género claro. não precisava de grandes claves. eram notas soltas. era um musical que me transportava até às portas do paraíso. em paz. com onze anos apenas já sabia tocar piano. gostava de sentir o frio das teclas nos dedos. de vez em quando deixava correr a palma da mão pelo teclado todo. e de repente tinha uma freira à porta a mandar-me calar. mas por fugaz que fosse o meu momento de glória essa espécie de música nas tardes de domingo acompanhava-me.


depois cortaram-me as vasas. de d'jamena para paris soube que o meu pai tinha morrido. nada me dizia. nada sentia. tenho a lembrança dele durante o período de algumas férias. muito poucas. era uma pessoa alegre divertida. enchia uma casa. não a minha. se é que eu posso dizer que a tinha. estive presente no funeral. afinal era o do meu pai. mas a recordação que tenho desse incidente é a imagem da minha mãe. toda vestida de preto. o rosto tapado por um véu. também preto claro. como viúva que se preze e não dar azo às más línguas. uma mulher muito bonita. e cheirava insuportávelmente bem. mesmo de véu conseguia adivinhar-lhe todo o sofrimento que lhe ia na alma. afinal tinha acabado de perder quem mais amava. e a mim restava-me resguardar nos mimos da avó raquel que me ajeitava os cabelos compridos sempre embaraçados e nas palavras doces do avô júlio que fazia questão de salientar que a gaiata só se ria do mal.


de olívia. o seu nome. ficava a olhá-la como quem a quer adivinhar. cheguei até a espreitá-la na esperança de encontrar algum jesto familiar alguma palavra conhecida algum cheiro que a identificasse. mas nada. nada de nada. e a situação agravava-se ainda mais quando ela no meio da narrativa das suas inúmeras histórias falava francês. sim porque a minha mãe sabia falar francês. o que na altura aquilo no alentejo era caso para se comentar. tinha classe. sim. sabia apenas que se tratava da minha mãe de verdade. após treze anos voltou para me recolher das terras do alto alentejo e trazer-me para a capital.tudo aquilo cortou tudo em mim. deixei as minhas amigas o meu colégio a minha missa o meu piano. golpe duro. sujo. muito baixo. isso não se faz. tinham-me cortado as asas. as que eu já começava a abrir para sobrevoar planícies e outeiros azinhagas e carreiros. voos planados com promessas de algum futuro promissor. no mínimo o de famosa pianista claro.

mudar de vida. mudar de mim. sempre que ouço carlos paredes nesta versão lembro-me desses tempos. e ainda nem os madredeus existiam. acho que instintivamente relacionei a voz de teresa salgueiro à dela. é assim. igual.


nunca falo no tchad. e no entanto nasci lá. quando tenho de o fazer rio-me por me lembrar das expressões que as pessoas fazem quando digo onde nasci. "nasceste onde? isso onde fica?" isso é áfrica. não se nota pela minha carapinha? apesar de continuar com os cabelos compridos. não tanto de quando tinha treze anos claro.


fez ontem setenta e seis anos. vinte dos quais passados em áfrica. áfrica minha. um dos filmes eleitos dela. e meu também. continua a contar-me as suas histórias. e revejo-me sempre a seu lado. lá. sem nunca ter voltado. imagino-a debaixo da grande mangueira do seu quintal de que tanto falava. sentada sem sopro de brisa no final da tarde. porque o dia foi tórrido. de sol e trabalho. e enquanto fuma um cigarro vem-lhe à lembrança toda uma vida alterada. as viagens não programadas. os filhos adiados. o amamentar falhado. a infância desmarcada.


e no jesto doce de quem puxa da cigarreira para tirar um cigarro acendê-lo e levá_lo à boca até ao fumo se espalhar pelo ar há aquele efémero mas eterno momento do estar. contigo lá. ao lado. teu. sempre.


áfrica dela. mãe. a minha.
desalinhadas. desencontradas.
como o fumo. partilhado.

ainda.

25.11.07

de tão só


eu

canso
tanto
de tão só

A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a dor do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana.A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo,o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro.O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e ferir-se,o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes de emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre.
Vinicius de Moraes

19.11.07

arte é


arte é


a arte é provocação
é casual
ou não
é eterna
é efémera
é espontânea
é fabricada
é mentira
é verdade
é de belo
é de feio
é fingimento
é verdade
é sentimento
é ressentimento
é mutável
é contínua
é descontínua
é opaca
é transparente
é tudo
é nada
do que entendermos que é

só depende do que sentimos
pode-se gostar ou detestar
amar ou odiar
provocar paixão ou ódio
ou não provocar

quando não se sente
não se vê
não se olha
nos é indiferente
e nada nos provoca
não é


para mim arte pode ser
e não o ser para ti.



18.11.07

preciso adormecer


se estivesses aqui tudo seria bem mais razoável.
aceitável.
e suportável.

tem horas que me apetecia estar aí.
nessa quietude em que o sossego inquieta tanto que se torna coisa estranha.
até insuportável de se manter.

se estivesses aqui agora as horas iriam prolongar-se em dias de desinquietação.
não tivemos tempo.
foi-nos efémero.
roubaram-nos as tardes longas de conversa amena de coisas sem jeito banais e sem sentido.
que falta me fazem.
como de ti.
sem ti.

continuo a escrever o teu nome
sem nome.
e a chamar-te.
mas não tenho um nome.
a quem chamar.

e continuo assim todos os dias quando acordo me levanto e abraço a manhã de alma aberta.
os mesmos bons dias de sempre.
o mesmo café.
o mesmo cigarro.
sem partilha.
sem dia.
sem ti.
se estivesses aqui seria assim?
preciso adormecer.
acredita.



14.11.07

era inevitável. mas sustentável.


foto de helena almeida
transporto-me ao sabor das horas dos minutos dos segundos que se avizinham e que cada vez passam mais urgentes.
deixo-me levar na espuma da corrente como se dela fizesse parte faz muito tempo. não sei se fico. se me deixo levar. se é inevitável ir. se devo permanecer. ou na insustentável inércia deva deixar desinquietar-me pelas marés que me convidam.
a cada dia que passa o meu caderno escasseia. as folhas teimam em passar. urgentemente. plena dos sentires que lanço nelas. mas falta-me linha. ausentam-se os traços. o abecedário concreto que quero revelar teima em não se manifestar.
das letras construo imagens. e crio odores invísiveis. tinto-me das letras. mas falta-me a cor. a cor de amor. se tivesse de dar uma cor ao amor pintava-o de azul. não há fórmula em cábula possivel. peguei nela e fechei-a numa gaveta qualquer. deitei fora a chave. contramaré remei e fui ao fundo. bem fundo. ao fundo do mar. onde o silêncio se aproxima mais da quietude do céu. respirei bem fundo. faltou-me o ar.
queria ter levado comigo algumas notas soltas. liszt seria o ideal. roubei-lhe algumas teclas. guardei-as bem guardadas numa outra gaveta qualquer. esta sem chave. perdi-me por lá. e o piano mudo. e o silêncio surdo. por cá.
um dia vivi em azul. anotei-o num papel. e soltei-me em tintas. construí aí uma paleta única. plena. não foi um azul qualquer. foi o azul de mim. nasceu assim. ao sabor das horas dos minutos dos segundos sem urgência. foi então que decidi não usar mais qualquer gaveta. soltei-o ao sabor da terra. atirei-o à corrente do vento. e lancei-o à água.
desinquietei-me. era inevitável.
mas sustentável.

10.11.07

e eu encontro-me a nu

e porque de repente se fez mágoa em mim?
sem razão aparente olho-me nos olhos e entristeço-me por nada. deveria ser o contrário hoje. estar bem porque hoje não é um dia comum. não um qualquer. não é igual aos outros da semana. não porque é fim de semana. nem porque é sábado. nem por ser dia dez. de novembro. deste ano. porque o dia é meu. de mim. vou ter de me expor. e isso complica comigo. expor-me em frente a amigos. a desconhecidos. e conhecidos. e abrir a alma assim a nu.
que vão ver-me? que irão ler-me? será que vão conseguir ir ao mais fundo do que eu escondo? e se perguntam? que respondo? mantenho-me calada? faço um aceno de não sei com a cabeça? ou digo " não imagino do que estão a falar". que faço?
e de repente toda esta insegurança e mal estar que odeio.
acho que não tenho de responder nada. limito-me a deambular por lá como quem diz "estou aqui. que mais querem saber de mim? está tudo lá. só precisam de olhar".
são catorze as telas. e passo a citar. la couleur. jaune. gosto de tisse. j'aime ma. de ti e de ma. azul verde e amarelo. amarelo verde e azul. désir. azulão. azul. amarelo. cês. noir et jaune. rouge blue et jaune.
são dípticos. um tríptico. e as isoladas. nos dípticos é que eu me construo. sempre o eterno par. dá que pensar. construções a dois. idealismos a desviar para um quase anarquismo de espírito. só assim consigo dar o salto para conseguir encontrar esse tal de bendito equílibrio abençoado. basta conjugar a linha servindo de moldura à forma preenchida de cor. plena. e o contraste é transformado. em paz.

neste desassossego em que estou agora poderá ser que alguém me consiga olhar. porque pela moldura não chegam lá.

e eu encontro-me a nu.

8.11.07

de ma de ti de se


de ti e de ma
nome sugestivo de apelido duvidoso.


de ti. de todos. dele.
de ma. meu.
de mim.
de sentir.


de vermelho de sangue
de paixão
de ciúme


de amarelo luz
de riso
de vício
de siso


de azul de mar
de matisse
de marc
chagall


de branco limpo
de amar
de respirar


de preto negro
de mágoa
de dor
de choro
de luto


de ti. nada.
de ti quase a mar
tudo!

6.11.07

e assim ando...e desando

há um sentido subjacente em tudo o que escrevo. aquele que não é escrito. que não se lê. que fica sempre comigo porque fica por dizer. é por isso que escrevo. algures alguém conseguirá ler-me. é esse pequeno grande prazer que me traz aqui.

saber que sem conhecer alguém nalgum qualquer lugar me leu. e quando me refiro a ler é sentir-me. o que transporto no peito com todo o sentimento e me faz estar de pé. que quando caio me levanto sempre. e que quando me levanto é certo que caminho recolhendo todas as forças que me são úteis para uma próxima recaída.

sou feita de altos e baixos. ou muito alto ou muito baixo. nunca encontrei um meio estar. e permaneço nessa procura. o equilíbrio de que falo está comigo. sempre o transportei. mas por vezes não consigo encontrar o fio da meada. embaraço-me. completamente.

o desembaraçar é que se transforma numa tarefa complicada. e quando termino de me desenlaçar dou por mim com outro fio já preso na alma. bastava-me talvez cortar. mas a teimosia de permanecer equilibrada leva-me novamente a novelar.

e assim ando...e desando.
até um dia. me cansar.