10.2.08

esboço para uma carta


lembro-me agora que tenho de marcar um encontro contigo,

num sítio em que ambos nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma das ocorrências da vida venha interferir no que temos para nos dizer.


muitas vezes me lembrei que esse sítio podia ser, até, um lugar sem nada de especial, como um canto de café, em frente de um espelho que poderia servir até de pretexto para reflectir a alma, a impressão da tarde, o último estertor do dia antes de nos despedirmos, quando é preciso encontrar uma fórmula que disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer.



é que o amor nem sempre é uma palavra de uso, aquela que permite a passagem à comunicação mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale, de súbito, o sentido da despedida, e cada um de nós leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio ser, como se uma troca de almas fosse possível neste mundo.



então, é natural que voltes atrás e me peças:«Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde, isto é, a porta tinha-se fechado até outro dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem sido pensadas.



no entanto, ao escrever-te para marcar um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos para dizer uma ao outro: a confissão mais exacta, que é também a mais absurda, de um sentimento; e, por trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos encontrar; que há-de ser um dia azul, de verão, em que o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas, que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros.




nuno júdice

5 comentários:

jorge esteves disse...

Esses sítios, marcados pelos (des)encontros, ficam marcados antes ou, ao contrário, ficam marcados... depois?...

abraços!

Gi disse...

Soube-me bem encontrar por aqui aquele que considro um dos melhores, se não o melhor, poeta vivo em língua portuguesa.
Tenho andado afastada da caixa de comentáriios, aé da minha mas hoje tive um tempo disponíve. Foi (é) um prazer passar por aqui e respirar a tranquilidade que daqui emana.

Um beijo, resto de um bom domingo

un dress disse...

tudo parece tão incontornável

tão irremediável...

pedir -lhes que falem. aos poetas.

de. por. nós.




.beijO

ivone disse...

tinta permanente

boa questão a que colocas
antes...ou depois...
...às vezes ficam permanente


gi
júdice é um dos meus eleitos
leio e releio
e encontro sempre reconforto
bj


un dress
se falarmos por nós
e de nós
somos poetas também

fica bem.

Maria José disse...

E fico a pensar... por onde anda, na noite, na madrugada, na alvorada fria, a carta por escrever mas já gravada no fundo do ser...