e o carimbo é sofrido

escreveu uma carta todas as semanas durante meia vida. "às vezes não me lembrava que dizer - disse_me morta de riso - mas bastava_me saber que ele as recebia." a princípio foram cartões de cerimónia, depois foram pequenos papéis de amante furtiva, bilhetes perfumados de noiva fugaz, memoriais de negócios, documentos de amor e por último foram as cartas indignas de uma esposa abandonada que inventava doenças cruéis para obrigá_lo a voltar. uma noite de bom humor entornou_se_lhe o tinteiro por cima da carta acabada de escrever e em vez de rasgá_la acrescentou um post_scriptum: " como prova de amor mando_te as minhas lágrimas." de quando em vez, cansada de chorar, zombava da sua própria loucura. seis vezes foi substituída a funcionária dos correios e seis vezes ganhou a sua cumplicidade. só não lhe passou pela cabeça uma coisa: renunciar. e no entanto ele parecia insensível ao seu delírio: era como se escrevesse para ninguém.
in crónica de uma morte anunciada
de gabriel garcia márquez


o escrever para ninguém não me incomoda nada. incomoda_me sim se não consigo letrar. quase um ano de letras de mim para mim. mas os outros aqui também têm papel. espectadores invisíveis acompanham_me lado a lado sem nada dizer.ou sim. e assim me construo num espaço dentro. num interior onde partilho o mesmo ar que eles. banho_me nos suores dos dedos e mergulho nas águas de tinta. a preto claro. nunca me esclareço de dúvidas que lanço sem perguntar. ao ar. outras há que tombam na página. não gosto quando acontece. a estes pontos de interrogação chamo de sombras de incertezas. e é nas reticências que vivo mais. e abomino os pontos finais.
salvo_me
se quem me ler me apelida de nonsense tem razão. ou talvez não. lida sim. o abecedário cai_me urgente no papel. espalha_se na folha e perde_se nas páginas. aguenta_se a palavra e esconde_se a idéia nas entrelinhas.
fugir
pouco me importa se é lido. essa leitura é dona de mim. a escrita refaz_me. é a minha cara que se estampa no branco. e o carimbo é sofrido que nem uma dor de parto por cada vez que a faço.
fotos de katia chausheva